A Literatura Aproxima os Povos

A Literatura aproxima os povos. Conhecer a história de um povo, o seu modo de agir, viver e pensar, está registada ao longo de séculos e séculos nos livros.

Fixar a história dos povos será uma tarefa para historiadores, mas é a liberdade literária e o seu pacto criador com a verdade que fixa o real absoluto.

E é a Língua de cada povo, organismo vivo que se deixa contaminar pela proximidade e pelo afeto que pode unir povos e evitar conflitos.

A Língua materna que podemos e devemos aprender e ensinar.

Na Língua encontramo-nos com as nossas diferenças e comportamentos para uma verdadeira troca cultural; um verdadeiro ato de tradução do que somos e de como estamos no mundo.

A linguagem que usamos para nos expressarmos no encontro com o outro: o vizinho ou o estrangeiro.

Quantos conflitos se teriam evitado se a nossa linguagem procurasse com delicadeza o entendimento da Língua do outro, com tudo o que ela nos pode informar e revelar.

Há linguagens humanas universais como a gestual ou a da música; mas aquela onde colocamos o que somos e de onde vimos é a nossa Língua materna, construída lentamente através de contaminações e encontros.

Difícil de aprender e, sobretudo, de ensinar; pois necessita de tempo e empatia.

Acredito que é pela arte poética que revelamos a nossa identidade mais profunda, onde reconhecemos a igualdade que nos humaniza.

Na Poesia expressamos a liberdade e a identidade de que somos herdeiros; e através dela nos manifestamos na mais admirável razão do humano.

Serão as práticas do comércio as mais exploradas para relações de vizinhança; mas permitam-me que vos proponha uma outra, mais difícil de concretizar, ampla e também milenar: A Literatura.

A Literatura tem milénios que ultrapassam a constituição de grande parte das nações ou estados europeus.

Une-os enquanto povos herdeiros de Homero ou Vergílio; através das suas línguas, hoje arcaicas e quase mortas, mas continuando como matriz da construção das línguas que hoje nos representam, enquanto comunidades diferenciadas pela história e geografia.

A Península Ibérica é um território de uma diversidade extraordinária, como a História e a Arte nos provam.

As relações que Portugal mantém com Espanha não são apenas uma questão de território ou vizinhança; são, essencialmente, a de uma cultura partilhada, através da aceitação e do reconhecimento das diferenças que cresceram a partir da uma matriz comum.

A proximidade territorial promoveu inúmeras batalhas e algumas guerras, mas também muitas alianças.

A Língua Portuguesa é uma derivação do galego e o castelhano uma língua em que os povos da península ibérica se devem encontrar com a sua Língua materna, moldada pela sua história e arte; após esbaterem as suas diferenças através do encontro com a sua riqueza e diversidade cultural: a que deu identidade a cada um dos povos.

Traduzir isso num diálogo permanente e não só festivo, é, na minha opinião, incluir parte da identidade de uma Língua numa outra e, naturalmente, deixar-nos contaminar pelo seu conhecimento.

Proponho aos habitantes portugueses e espanhóis que partilham fronteiras antiquíssimas a partilha da sua Língua: partilhem com o seu vizinho a sua Língua personalizada (incluindo os seus regionalismos), numa celebração de acolhimento e proximidade.

Haverá algo mais íntimo para partilhar que uma Língua? Porque não dá- la a conhecer, com a sua história regional e nacional ao que habita a escassos quilómetros e que partilha estradas e ferrovias?

Fazê-lo através dos livros, do cinema ou do teatro é o primeiro passo para uma contaminação do vivo que habita cada língua.

(Não esquecendo a dança da festa popular ou a mesa partilhada com alegria).

A Literatura tem a força das revoluções

Começar por Ler em comunidade o Canto III d’ Os Lusíadas, onde Luís de Camões cria a Lenda de Inês de Castro tal como a conhecemos hoje, segundo a opinião informada de António de Vasconcelos, primeiro diretor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, pode ser uma experiência única de proximidade cultural.

A épica tem a força da intemporalidade; como as cantigas de amigo de D. Dinis, esposo de Isabel de Aragão, rainha consorte que mostrou aos portugueses o quando a caridade e o acolhimento na doença e no infortúnio pode ser um bem real.

Ou dar a conhecer o criador do romance moderno (como nos ensina Milan Kundera num importante ensaio):  Miguel de Cervantes.

Ler D. Quixote em comunidade e na sua língua original será sempre uma experiência intelectual e afetiva sem precedentes; especialmente para quem o livro continua a ser um lugar de aventura e de encontro.

E partilhar a poesia densa e especulativa de um Fernando Pessoa ou a limpa e nobre de Sophia de Mello Breyner Andresen.

Fazê-lo em língua portuguesa; uma e outra vez, até ao nosso estimado vizinho lhe parecer luminosa como a Revolução dos Cravos.

E acolher a poesia de Gustavo Adolfo Bécquer, Antonio Machado, Pedro Salinas, Francisco Brines ou Chantal Maillard como parte da humanidade que a todos nos habita.

Até a ressonância do poema nos perfumar os dias e animar as nossas festas mais populares nessa outra língua: vizinha, doce, bela e musical.

A Biblioteca, que pode ter a dimensão de uma caixa onde apenas caibam meia dúzia de livros, pode caminhar de aldeia em aldeia; pode sentar-se no café, acompanhar o solitário no Jardim Público; ou convocar a comunidade citadina para a partilha de um autor, de um texto, de um conto ou de uma lenda que funda uma romaria ou dá nome a um lugar onde a família por vezes almoça.

Em português, para quem a língua ainda não é familiar; e em castelhano, para quem a língua do vizinho ainda não é uma manifestação cultural

Uma vez por mês: Ler e deixar Livros e Autores (como a semente de uma árvore que se cria da raiz à grandeza da sua sombra) até a troca se transformar numa biblioteca comum.

A Língua Portuguesa tem o poder da viagem; o português a grandeza do Oriente e África, e esse Brasil imenso que em superfície supera a nossa comunidade europeia.

Brasil que faz fronteira com quem tem como Língua materna o castelhano. Trocar a aprendizagem das nossas Línguas através da arte, é inventar um mundo de conhecimento e grandeza planetária.

Que o saibamos iniciar com a convicção de quem lança à terra uma semente de uma bela árvore que apenas dará frutos aos nossos descendentes, é um ato de profunda generosidade.

Dos que se iniciam para não terem fim.

Elsa Ligeiro

Divulgadora cultural, poeta y editora portuguesa de Alma Azul.

IMAGEM: Exposição «Camões. Letras Impressas (1572-2024)», na Biblioteca Joanina, Universidade de Coimbra.

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